10/12/2022

15/04/2022

Projeto "Somos"


A APCEF/SP (Associação de Pessoas da Caixa Econômica Federal de São Paulo) para comemorar seus 115 anos de existência, lançou no dia 08/04/22 a versão digital do livro “Somos”, e publicaram o meu texto. Para quem quiser a versão digital, é só fazer o download gratuito no link abaixo.

 Sobre o projeto:

“Este projeto nasceu de conversas, da ideia de eternizar o importante trabalho dos empregados da Caixa durante a pandemia. Assim nasceu o projeto “Somos”, um livro no qual os bancários contam como foi trabalhar no único banco público do País em um momento crucial da história do mundo. A pandemia mudou a forma de encarar o trabalho e trouxe muita coisa nova para o dia a dia no banco público. Mas o principal foi o que aconteceu com cada pessoa. O conjunto de acontecimentos traça o que significa este momento único na história da Caixa e da sociedade. ”






    Meu texto foi parcialmente publicado, devido ao limite de caracteres disponível. Mas é possível lê-lo na íntegra aqui abaixo:


Efeito dominó

 

Com certeza ninguém imaginou que um dia passaríamos por uma pandemia. Aliás, a palavra “pandemia” era algo esquecido no dicionário. Mesmo com históricos de epidemias anteriores, como a de gripe espanhola, praticamente há 100 anos atrás, ou a de varíola (1977), que o governo militar tentou esconder, viver algo semelhante estava fora de questão. O avanço da medicina somado ao número de fármacos e vacinas que temos disponíveis, nos dá a sensação de ter certa “segurança sanitária”. Mas depois do ano de 2020, com certeza essa “segurança” se mostrou muito frágil. 

No final do ano de 2019 começaram a pipocar notícias sobre um novo vírus que ataca nosso sistema respiratório, mas acho que pouca gente deu bola para isso. Virou o ano, as notícias sobre o micro-organismo aumentaram, a OMS - Organização Mundial de Saúde entrou em cena, mas, quem se importou? O pior é que o momento foi propício para que o futuro protagonista mundial, o coronavírus, se espalhasse: festas de final de ano, férias, carnaval, turismo a mil por hora. Vale lembrar que o ano de 2020 começou com o então presidente americano Donald Trump ordenando um bombardeio no Irã (Bagdá), que resultou na morte do general Qassem Soleimani... mau presságio? Com certeza!

Logo após o carnaval fui com minha namorada passar férias em Florianópolis/SC. Muita praia, sol, cerveja, porções e nada de pensar em vírus, lógico! Mas quando estávamos para voltar a SP, em meados do mês de março, as notícias sobre uma epidemia que se espalhava muito rápido, e mundialmente, começaram a ser constantes. Daí tudo mudou. Em São Paulo o governador já havia decretado o fechamento de centros culturais, museus, locais públicos e começou a se falar em “medidas restritivas”, fechar o comercio e um tal de lockdown. Em Santa Cataria, a mesma coisa: cidades fechando rodoviárias, praias interditadas, e o espanto da péssima novidade se misturava à insegurança com o futuro. O que poderia acontecer? Quando embarcamos no aeroporto, voltando para São Paulo, o clima era outro, todos os funcionários usavam máscara, que logo se tornaria item de uso obrigatório e indispensável. E o que se achava ser uma epidemia, virou a tal pandemia!

Chegamos na capital paulista e o impensável acontece: fecha-se todo o comércio, decreta-se medidas sanitárias obrigatórias e a preocupação toma conta de todos. Quando retorno ao trabalho no banco (agência Bernardino de Campos/SP) o horário é alterado, passando a funcionar das 08h às 14h, e pouco tempo depois reduziria o fechamento para as 13h. Coincidentemente o primeiro caso de morte por Covid-19 é registrado em SP: um homem de 62 anos que veio a óbito, num hospital que fica a poucos metros da agência. A doença chegou com força e já estava muito próxima.

O governo federal decretou alguns serviços como essenciais ao funcionamento da sociedade, dentre eles o serviço bancário. Na agência em que trabalho há dois caixas, eu e outra funcionária, que foi considerada do “grupo de risco” e teve que aderir ao trabalho remoto. Fiquei sozinho no atendimento de caixa, às vezes ajudado pelo tesoureiro. Em seguida foi implementado o “auxílio emergencial”, que fez as agências da CAIXA lotarem! Ou seja, não fiquei de quarentena, utilizava o transporte público para ir e vir, atendia dezenas de pessoas todos os dias, então ser contaminado seria questão de tempo. Agora, quanto tempo levaria, não havia como saber.

O número de contaminados começou a subir vertiginosamente e, consequentemente, o de mortos. E veio a primeira bomba: um ex-funcionário, que foi gerente PJ em nossa agência, morreu de Covid, aos 37 anos. Lázaro Falcirolli era jovem, casado, dois filhos, havia saído do banco a poucos mais de dois anos, para abrir sua própria empresa. Teve o sonho abreviado. Dias depois, outra bomba: um rapaz que trabalhava como motorista para a proprietária de uma das lotéricas que dávamos suporte, faleceu. Era o Eduardo, um rapaz de pouco mais de 40 anos, às vezes ia até agência, sempre simpático, aparentemente uma pessoa fisicamente forte, porém... O cerco parecia que cada vez mais se fechava: o cunhado do segurança falece; um amigo meu de bairro também se vai; outro amigo é internado e intubado; as notícias sobre internações são constantes. Hospitais de campanha foram improvisados em várias cidades, além da capital, tamanha foi a demanda por leitos. Cada vez mais pessoas eram diagnosticadas com Covid.

Os meses passam, o braço de ferro político-partidário é cada vez mais disputado e nós, meros mortais, ficamos no meio de um tiroteio ideológico raso e improdutivo. Enquanto a ciência mundial corria atrás de uma vacina, métodos paliativos ocupavam a pauta midiática diária da opinião pública, criando discussões inúteis. Nesse meio tempo toda minha família pegou a doença. Meus pais e dois irmãos. Senti muito medo, pois haviam casos de famílias dizimadas em poucos dias, após a infecção. Mas enfim tudo correu bem. Meu pai, de 75 anos, foi que mais teve sintomas. Fez o tratamento em casa, em poucos dias estava bem novamente. Minha namorada também pegou, de forma leve. Perdeu o paladar por alguns dias, depois voltou ao normal. E boa parte da pandemia ficamos sem nos ver, seguindo as restrições, o que não foi fácil. Escrevi até alguns poemas sobre, seguem dois deles:


I

 

Existe um lado meu

que só existe ao lado teu

e o distanciamento involuntário

fez dessa lado um solitário

 

Não há máscara que proteja

dessa obrigatória tristeza

Cativo, no limite da obediência

coexistir é uma dependência

  

II

 

Já perdi as contas

de quantos beijos vou te dar

esse déficit de amor

você há de me pagar

 

E vou te cobrar com juros

fazer juras e cenas

e quero receber em beijos

beijos desses de cinema

 

            Mas a pandemia não dava sinais de trégua.

Quem gosta de ler sobre história, seja ela sobre qualquer civilização que já povoou qualquer região do planeta, vai perceber que todas praticavam algum rito fúnebre. Cada uma a seu modo, de sambaquis a vasos funerários, passando por incinerações, mumificações, todas davam algum destino a seus finados. A pandemia nos privou disso. As prefeituras, pelo menos nos grandes centros urbanos, restringiram os velórios, muitas vezes partindo direto para o sepultamento. Algumas vigílias foram muito rápidas, com o mínimo de gente e com caixão lacrado. Covas foram abertas em série, para tornar o trabalho do coveiro mais dinâmico. Muitos se foram sem o tradicional ritual de despedida. Uma dor a mais para as famílias que perderam entes queridos. Perdi três parentes num espaço de três meses: um tio, uma tia e um primo… o que é mais triste, do mesmo núcleo familiar. Nenhum deles para o Covid, mas também não puderam ser velados. Com certeza vivemos a época mais tristes de nossas vidas, só sendo muito frio e indiferente para não perceber isso.

Mas enfim algo de bom acontece: desenvolve-se algumas vacinas, que começam a ser aplicadas na população, por escalas de idade. Foi um passo na direção certa, apesar de ainda vigorar o “cabo de guerra” ideológico entre os “vacinação já” e os “anti-vacina”. O curioso foi que a maioria dos políticos “anti-vacina” se vacinaram, junto com seus familiares. Pregavam para a população um procedimento denominado “tratamento precoce”, um kit com remédios ineficazes, mas entre eles a vacina foi a regra. Comprou a ideia do kit quem quis, informação não faltou.

Ainda longe de chegar a minha vez na fila, a empresa solicitou aos funcionários que fizessem o exame de sorologia para Covid-19, para verificar quem estava infectado com o vírus, quem esteve e produziu anticorpos e quem não teve contato, que foi o meu caso. Confesso que fiquei surpreso, depois de tanta gente próxima a mim ter pego, de atender inúmeros clientes na agência, de usar transporte público diariamente e de trabalhar numa região onde há dezenas de hospitais, sair ileso era uma questão de sorte... que não duraria muito tempo.

No começo do texto comentei que havia voltado de férias, e logo teria que marcar outra novamente, para não ter que sair de forma compulsória. No final de abril de 2021 saí de férias. O país tentava voltar a “normalidade”, se amparando em medidas sanitárias, vivendo o que foi chamado de “novo normal”, porém era só uma forma de tapar os olhos para a realidade, em meio a muita gente que não tinha outra opção a não ser voltar ao trabalho. O “auxílio” não resolvia a vida da maioria dos assistidos. O trabalho remoto, à distância, preservou muitos empregos. Dizem até que veio para ficar. Enfim, de férias no bolso, decidi ir para Ilha Grande/RJ. Fui sozinho.

Uma semana num lugar paradisíaco, onde a pandemia só existia em locais como mercado ou farmácia, porque o uso da máscara era obrigatório, no resto... Entre trilhas no mato, locais históricos e passeios de lancha, foram sete dias bem agradáveis.  Voltei para SP (7h de ônibus) e quando cheguei estava gripado, bem leve, nem associei ao Covid. Tomei um antigripal qualquer e fui para a casa da minha namorada, era a semana do seu aniversário. Fui no dia natalício, que caiu numa quinta-feira, e no sábado, em que foi feito um almoço de celebração, com pouquíssimos familiares. As recomendações era que se evitasse “aglomerações”, mas confesso que era (e é) muito difícil não juntar um mínimo de pessoas. Acredito que para a maioria foi assim. Nesse mesmo dia, à noite, viajei para Ubatuba, litoral norte de SP. Já havia alugado uma casa, junto com meus dois irmãos, que estavam lá desde sexta-feira.

Cheguei lá quase no domingo (5h de ônibus), meu irmão, junto com a namorada, me apanhou na rodoviária. No domingo, céu limpo, sol brilhando, nada mais lógico do que encher o isopor e ir à praia, aproveitar. Na madrugada de segunda-feira acordo com uma dor de cabeça que nunca havia sentido. Parecia que minha cabeça iria explodir. Engulo alguns comprimidos, coloco gelo numa sacolinha plástica e levo à testa, tentado amenizar o sofrimento. Passo a madrugada tirando curtos cochilos no sofá, até amanhecer. No desjejum, mal consigo terminar o copo de leite com café. Tento comer algo, mas não desce. Passo o dia me sentindo mal, a tosse aparece ainda leve e considero a possibilidade de estar com Covid. Só vi um hospital na cidade e estava cheio. Pelo site do plano de saúde, procuro algum local onde eu poderia ser atendido, mas o mais próximo ficava na cidade vizinha. Decido voltar para a capital, o que se mostrou o certo a ser feito.

Compro a passagem para as 9h da manhã, chego à tarde, passo em casa, banho e troca de roupas, vou ao hospital. Devido aos meus sintomas (a tosse piora), sou encaminhado para uma ala que é só para Covid. O curioso é que em pouco tempo, nem meia hora de espera, a quantidade de pessoas que chegaram foi impressionante. Sou atendido, faço o teste das hastes, exame de sangue e uma radiografia do tórax. O exame que detecta o vírus demorava até 48h para ficar pronto. Enquanto eu esperava para ser chamado pelo médico, ao meu lado havia um rapaz explicando para a esposa e o filho que teria que ficar internado, pois a doença já havia atingido 25% de seu pulmão e, por ter um problema na perna, corria sério risco de ter uma trombose. Fiquei apreensivo, ¼ de pulmão infectado, caramba! Chega a minha vez e observando minha radiografia o médico prefere me afastar do trabalho por 11 dias, passa uma receita para o início imediato do tratamento, em casa. Pouco mais de 24h depois o exame das hastes confirma: 19/05/2021 - “NOVO CORONAVIRUS 2019 (SARS-COV-2), DETECÇÃO POR PCR”.

Trancado em casa (moro sozinho), familiares, namorada, trabalho e amigos avisados, fico em isolamento total. Por recomendação de um amigo, compro via internet um oxímetro, um aparelho minúsculo que você põe na ponta do dedo indicador, para medir a saturação, o nível de oxigênio no sangue. Esse aparelho foi fundamental. Três dias se passaram e eu pioro muito. Tomar banho era um sacrifício, não parava de tossir um segundo. Ficava a maior parte do tempo deitado, sem sentir fome. Numa manhã fui medir a saturação, marcou 85. A recomendação era de que se baixasse para menos de 90, teria que voltar ao hospital. Esperei mais algumas horas, medi novamente e nada de subir.  Avisei a todos, chamei um motorista de aplicativo, voltei ao hospital.

            Foi complicado chegar lá, mal conseguia falar sem tossir. Foram feitos novos exames, outro de sangue e uma tomografia. A médica me chama e dá a pior notícia que já recebi até hoje: seu pulmão foi comprometido em 50% pela doença, vou ter que interná-lo direto na UTI. Fique sem reação…  Respondi “ok”, avisei meus familiares, que rumaram na hora para o hospital. Minha namorada entrou em desespero. A partir desse momento, aonde eu fosse conduzido, iria de cadeira de rodas. Era domingo, começo de tarde, que pareceu ser bem longo.

            Fiquei internado num grande hospital, na Av Paulista. Se não me engano haviam 8 UTIs, cada uma com capacidade para 10 a 15 pacientes, todas estavam lotadas. Algumas foram montadas às pressas, devido à demanda, segundo funcionários me relataram. E tudo isso era só para doentes de Covid.  Fiquei numa ala que era uma espécie de “triagem”, esperando vagar um leito na unidade intensiva. Devo ter ficado umas 3h esperando, nesse meio tempo minha mãe e irmão chegam. É difícil olhar para a mãe num momento desses, que visivelmente estava abalada, até mais do que eu, que poderia ter morrido.  Minha namorada só me relatava que estava em prantos. Amigos a todo minuto enviavam mensagens pelo celular. Na hora de ir para a UTI, foi mais difícil, porque minha mãe só poderia me acompanhar até determinado ponto. Choros a parte, um momento desses, de separação, só Freud explica.

            Fico numa ala improvisada, com mais 9 pacientes, todos separados por “cortinas” (ou algo do tipo). Parece um tanto precário eu relatando assim, mas era tudo extremamente bem equipado, com enfermeiros e médicos a todo momento. O primeiro médico vem me “recepcionar”, fala sobre meu estado, o que poderia acontecer, mas me tranquiliza porque, apesar da doença ter se espalhado muito, o quadro era instável e provavelmente de reversão.  Apesar do susto, tudo caminhava bem. Como eu estava consciente, permitiram que eu ficasse com o celular, o que foi muito bom, porque o tempo passou mais rápido. Na linha do “há males que vem para o bem”, nesse meio tempo falei com amigos que não conversávamos há mais de anos. Um reencontro “por motivos de força maior” que foi benéfico. Na segunda-feira à tarde retiraram o meu cateter nasal, pois minha saturação permanecia acima de 95. O médico da noite me disse que eu era o “melhorzinho” daquela ala. Realmente era verdade: nos dois dias que fiquei nessa UTI, não vi ninguém acordado. Como eu ia ao banheiro andando, tive como observar o entorno. E, sinceramente, é triste demais ver várias pessoas desacordadas, deitadas sobre as camas, esperando por melhoras. Espero que tenham conseguido se recuperar. Na terça-feira pela manhã, já com o quadro de saúde bem melhor, sou removido para um “quarto normal”. Era hora de abrir espaço para outro.

            Vou para o quarto, todos ficam aliviados. Passo o dia lendo, revezando o livro com a tevê. Na conversa com os funcionários, todos, dos faxineiros aos médicos, tiveram Covid. Alguns relataram sequelas, dos mais variados tipos: dores musculares, perda de memória, fraqueza, queda de cabelo (?!)… e a médica que me acompanhou nesse estágio da minha internação falou sobre as possibilidades que eu ainda poderia enfrentar.  Fico mais três dias internado, recebo alta na sexta-feira as 12h. Em poucos mais de 10 dias fui do 0 aos 50% do pulmão infectado, e voltei a quase zero. Que belo susto, regado a uma enxurrada de remédios! Doses intravenosas, injeções na barriga, capsulas, xaropes, de tudo um pouco.

            O pós-doença também é bem complicado. Fisioterapia muscular, muitos remédios para o sistema respiratório, efeitos colaterais, e mais alguns dias de molho. Uma semana depois de sair do hospital eu já estava de volta ao trabalho. Fui recuperando a velha forma aos poucos, tudo correu bem. Mas as notícias de novas perdas não paravam. Um tio, um primo do meu pai, um vizinho que vi crescer e aos 39 anos, sem comorbidades, todos foram levados pelo Covid. Aliás, essa estória de que as pessoas com comorbidade correm maior perigo é balela. Essa doença não tem padrão, todos estão em sua alça de mira. E por ser uma doença nova, ninguém sabe ainda o que pode nos reservar no futuro. Enfim, descobrimos o que é uma pandemia da pior forma: vivendo-a. Aos que sobreviveram, vacinem-se, lavem as mãos, abracem as pessoas queridas e cuidem-se.


SP/SP – 24/11/2021

André Braga

@ABPoeta