06/04/2010

Sem dó - I

Algo de estranho lhe acontecia. Antigamente não reparava, mas de uns tempos para cá não conseguia mais deixar de notar. Suas entranhas se contorciam cada vez mais de raiva, provocando uma reação trêmula logo abaixo do seu olho direito, como se fosse um pedido do corpo à mente – faça alguma coisa, e logo. Os noticiários da TV passaram a ficar insuportaveis: a mulher, sempre bem penteada, roupa aprumada, linguagem impecável, anunciava a desgraça com semblante de preocupação. Atônita. Tantos mortos não sei onde, assalto termina em tragédia não sei donde, seqüestro, desemprego, crise... Mas logo após a enxurrada de sangue e tristeza vinham os gols da rodada, alterando da água para o vinho a expressão no rosto da apresentadora. Não conseguia mais acompanhar essas inversões de humor, não lhe fazia sentido aquilo. Valores contrários caminhando lado a lado em prol da informação - cretinos! - era assim que passou a chamar os jornalistas que apresentavam os programas policiais. Locutores da morte encobrindo a verdade, gritando mais e mais que é preciso fazer isso, é preciso fazer aquilo - mostra a cara do vagabundo ai... temos que tomar alguma providência - aquilo para ele era o fim. Vomitou.

Certo dia dentro no vagão do metrô viu um cartaz que dizia: adote um amigo. Nele havia alguns animaizinhos desenhados com cara de abandonados, e descendo mais um pouco as instruções para que você, com dinheiro, contribuísse para a casa sei lá das quantas e passasse a “criar” um desses desamparados bichinhos - algum filho da puta abandona o bicho e outro filho da puta, com dó, adota-o a distância. Só rindo mesmo.

Saiu pela Sé em direção a Rua Benjamin Constant. Passou indiferente pelos garotos imundos que cheiravam cola na praça – olha o crente, maldito, acha que vai salvar a humanidade gritando desse jeito. Camelôs amontoados vendendo tudo quanto é porra. Um bando de gente procurando trabalho. Alguém tropeça: um ri, outro ajuda (coisa rara). Uma mulher com uma criança de colo pede aos transeuntes: uma moeda pra dá de comer a menina. Obrigado, Deus lhe abençoe. Sentiu nojo daquilo. Passou em frente ao banco. Filas enormes... seguranças. Vai graxa ai doto, sai pra la molambo. Guarda Civil Metropolitana presente, Estado coercivo imponente, mantendo a ordem... ordem. Chamam isso de ordem. A ordem está inversa. Segui na rua, subiu a Quintino Bocaiúva. Livros usados... usados... somos todos usados.

De saint-tropez preta colada ao sedutor copo, parada num ponto qualquer do Lgo São Francisco, encarou-o. Caminhou em direção a ela, maravilhosa, a calcinha, marcada na calça, era minúscula. Deixava escapar a provocante renda pela lateral, de propósito. Top minúsculo também, apertando os seios.

- E ai, ta a fim de um programa?

- Quanto?

- Oitenta.

- Ok.

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